Por Cesar Moisés
Quando em 14 de setembro de 1998 o então papa João Paulo II publicou sua 12ª Encíclica ― Fides et Ratio ― que, devido a temática abordada, causou frisson no mundo inteiro, a impressão que se teve é que a fé e, consequentemente, a religião, inimigas da razão, quisessem agora manter uma harmonia impossível. É como se elas fossem água e óleo, não tendo o que dizer uma à outra, devendo manter-se cada uma em seu próprio campo de atuação. A igreja ― leia-se o catolicismo ― através de seu pontífice maior também já havia reconhecido, inclusive formalmente, em 1992 o erro cometido no caso Galileu. Evidentemente que vozes mais “conservadoras” do catolicismo afirmam que, na verdade, o erro foi justamente o pedido de desculpas pelo falecido papa. Porém, o fato é que essa atitude serviu como uma forma de comemoração para os racionalistas que acreditam que o reconhecimento do equívoco demonstra o ilogismo que há em a ciência ser subordinada à religião.
Não questiono a inegável verdade de que não há lógica em a ciência ser restringida por assuntos de “fé” (fé aqui no sentido denominacional) desta ou daquela religião, porém, não acredito que seja interessante para a ciência uma “autonomia absoluta” (o que, particularmente, não acredito que exista) como se esse tipo de concessão pudesse torná-la mais produtiva e interessante. Recentemente, André Petry escreveu na revista Veja (Edição 2163, n.18) que a tecnologia [ciência] é moralmente neutra. No melhor estilo positivista, disse isso como se não houvesse pressupostos e premissas que fundamentam a elaboração de qualquer tecnologia. É como se alguém pudesse produzir qualquer tipo de conhecimento em um vácuo, em uma bolha atemporal que não sofre influência e nem influencia (Deixo claro que isso vale também para a teologia). Sua afirmação fez-me lembrar do que li na ficção O Diálogo, de Peter Kreeft. Na narrativa, interagem C. S. Lewis, Aldous Huxley e o presidente norte-americano, John Kennedy, todos falecidos no dia 22 de novembro de 1963, com espaços de apenas poucas horas. Quando Kennedy interpela C. S. Lewis com a objeção: “― Cálculos não mentem”. O professor de Oxford prontamente lhe replica: “― Mentirosos calculam”. Se não se pode confundir ato com agente, não é possível conceber o ato ― mesmo que este tenha sido involuntário ― sem um agente.
Na questão da ciência, todos os seus resultados ― indistintamente ― são frutos de atitudes voluntárias, pensadas, refletidas e com um propósito muito claro. Salvo raríssimas exceções (como no caso da “invenção” do telefone por Alexander Graham Bell), nenhuma tecnologia é produzida por acidente ou visando uma massificação inicial, de forma que todos tenham acesso ao invento. Pensar assim é ingenuidade. Alinho-me com Petry no fato de que a demonização da tecnologia é uma inutilidade, mas não posso esquecer-me que ela é sempre produto de uma visão de mundo. Mesmo que o resultado final seja objetivo, tangível e lógico, o grande e grave problema é quando há uma negação acrítica de que as premissas, os pressupostos e as motivações que levaram os seus criadores a pensá-la, não possuem a mesma objetividade e concretude do seu resultado. Isso implica em afirmar que não existe autonomia, mas as ideias são geradas dentro de um continuum social: você influencia e sofre influências. E mais, quanto menos consciente disso, mais refém a pessoa torna-se de seus pressupostos e ideologias. Consequentemente ela será mais intolerante, discriminadora e unilateral, pois partirá do princípio que todo mundo deve pensar igual a ela. Por isso, dizer que a ciência atual (com sua busca desenfreada por produção tecnológica de consumo de massa) visa apenas “melhorar” a vida das pessoas é um simplismo inconsequente. Qualquer um sabe que a volúpia tecnológica é inspirada pelo capitalismo dos países de Primeiro Mundo. Nem bem saiu um computador ou celular, dezenas de outros já estão a caminho, inspirando o consumismo de milhões que acreditam que estarão adquirindo o melhor, quando na realidade, ao chegar ao Terceiro Mundo, os aparelhos já estão obsoletos!
Mas, voltando à tendência e à postura dicotômica que insistem em manter fé e razão (ou ciência e religião) separadas, questiono: Será que tal postura reflete a verdadeira relação entre esses dois campos da realidade? É sabido, como diz Afonso Soares e João Décio, em Teologia e Ciência, que a “história testemunha [...] momentos de integração, ruptura e diálogo” entre elas, isto é, fé/razão ou ciência/religião, geralmente experimentam essa dialética constante que mostra-se recorrente no processo histórico. Por isso, acredito que a grande pergunta mesmo é se existe ao menos possibilidade de separá-las! É claro que nesse sentido existe diferença entre o tipo de “fé” que aqui está agora sendo discutida e que entendo ser impossível separá-la da ciência. Contudo, isso não a torna menos improvável que a fé religiosa, mas apenas diferente. Thomas Kuhn disserta em seu clássico A Estrutura das Revoluções Científicas, que quando um cientista desenvolve uma pesquisa partindo de um paradigma que ele tem como certo, “não tem mais necessidade, nos seus trabalhos mais importantes, de tentar construir seu campo de estudo começando pelos primeiros princípios e justificando o uso de cada conceito introduzido” (p.40). Dessa forma, mesmo que o paradigma fundante não seja um fato, mas uma crença filosófica ou um arcabouço teórico, ele fundamentará toda a sua produção científica sobre tal premissa e sua atividade será desempenhada sem nenhuma reflexão crítica a respeito do assunto, pois o cientista a tem ― aprioristicamente ― como verdade.
A cultura brasileira tem o costume de “romantizar” a história e não conhecer os fatos com mais profundidade antes de abraçá-los. Essa postura é fruto de um processo civilizatório que coloca viseiras na sociedade, condicionando-a à polarização. De um lado estão as pessoas inocentes que acreditam que são miseráveis “porque Deus quer que assim seja”, e do outro, as que acreditam que adquirindo e consumindo mais e mais, obterão felicidade. Quanto à parcela infinitesimal que consegue tudo que é lançado, cedo descobre que essas coisas não produzem felicidade, e que é preciso preservar a natureza e assim não destruir o planeta. As parafernálias tecnológicas não podem ser um fim em si mesmas, mas também não podem ser um “meio”, visto que não proporcionam as melhores condições para qualquer um fim. Quando Petry disse que o “pensamento religioso, traduzido na ideia de que somos criaturas divinamente concebidas, tende a turvar a percepção de que nossa condição natural é miserável”, pois a vida do homem primitivo era muito difícil e que a “tecnologia nos retirou dessa miséria”, esqueceu de dizer que a tecnologia não nos tornou mais humanos, mais próximos e relacionais. Aliás, se se quisesse mesmo discutir o que a tecnologia causou à humanidade, comparando-a ao papel que a religião desempenhou, basta olhar para o depoimento do historiador francês Fustel de Coulanges, em sua obra A Cidade Antiga, quando diz que o “que uniu os membros da família antiga foi algo de mais poderoso do que o nascimento: o sentimento ou a força física”, e que é justamente “na religião do lar e dos antepassados [que] se encontra esse poder”, não significa que a “religião criou a família, mas seguramente foi a religião que lhe deu as sua regras”, por isso recebeu “a família antiga constituição muito diferente da que teria se os sentimentos naturais dos homens tivessem sido os seus únicos causadores” (pp.36-7).
Mesmo sendo uma expressão religiosa totalmente estranha ao cristianismo, seu poder de catalisação ainda é infinitamente maior, em termos de fortalecimento familiar, que qualquer hardware com seus softwares mais sofisticados. Assim, ao absolver a tecnologia do seu mal uso, Petry esqueceu que o mesmo é verdade em relação à religião. Ela pode servir para bons e maus propósitos. O próprio fato de a humanidade ter feito tanto progresso em relação à tecnologia, mas paradoxalmente, não deixar de buscar um sentido para a vida em algo que transcende sua existência física e material, demonstra que se ela não pode avançar e evoluir sem tecnologia, tampouco o fará sem a devida valorização de sua essência e da busca por respostas que extrapolam os limites do que a ciência pode lhe oferecer. Se existe a boa tecnologia, resultante da boa ciência, existe também a piedade, o amor, o humanitarismo, a voluntariedade, o altruísmo e a solidariedade, frutos de uma vida cristã condizente com os valores ensinados no cristianismo.
Na décima terceira edição da Consciência Cristã, o pastor César Moisés estará ministrando palestras dentro da programação diurna do evento. Essas palestras serão realizadas nos dias 6, 7 e 8 de março na Central de Palestras
Na décima terceira edição da Consciência Cristã, o pastor César Moisés estará ministrando palestras dentro da programação diurna do evento. Essas palestras serão realizadas nos dias 6, 7 e 8 de março na Central de Palestras
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